Por Karen Luise
Mary Aguiar foi a primeira juíza negra do nossos país!
Nasceu na Bahia, no ano de 1925, filha de um taxista e de uma dona de casa. Em 1962 tomou posse no cargo de Juíza de Direito naquele Estado, na Comarca Remanso. Jurisdicionou até 1995, ano em que se aposentou aos 70 anos de idade.
Semana passada acordamos com a notícia de que ela se foi, aos 95 anos.
Eu somente soube de sua história faz muito pouco tempo. Queria ter falado a respeito de sua vida antes. Não foram poucas as vezes que abri meu computador e digitei algumas frases tentando dimensionar a proeza por ela operada. Ficava imaginando como teria sido o caminho percorrido para o ingresso na carreira, as situações pelas quais passou. Onde estudou? Quem eram seus familiares? Por que não se tornou desembargadora? Enfim, pensava sobre a invisibilização de sua história e sobre o tamanho do desafio que não apenas o Poder Judiciário, mas todo o Sistema de Justiça possui diante das realidades vividas por mulheres negras em nosso país: o da sua inclusão em todos os espaços e o da melhoria de suas condições de vida.
O Sistema de Justiça, aqui entendido como a Segurança Pública, o Ministério Público, a Advocacia e o Poder Judiciário foi, e é, direta e indiretamente implicado nesse estado de coisas, pois na mesma medida em que sustentou a escravidão, opera de modo a manter as desigualdades presentes, o que somente poderá ser revertido mediante um agir interseccional.
No que diz respeito a inclusão, para que se tenha uma ideia, comparativamente, apenas na década de 70 magistratura do Rio Grande do Sul deixou de ser composta unicamente por homens. As mulheres negras chegaram na carreira bem depois, nos anos 80, e talvez hoje não atinjam o número de dez dentre as que se encontram na ativa e aposentadas.
Passados quase 50 anos do ingresso de Mary Aguiar no Poder Judiciário brasileiro, os números demonstram que pouco se avançou.
Conclusões da Plataforma Justa , que examinou dados do IBGE em conjunto com as pesquisas do Conselho Nacional de Justiça, indicam que a população brasileira é composta por 25,5% de mulheres negras. Contudo, para cada juíza negra há 7,4 juízes brancos. Esta diferença ainda é maior quando se analisa a quantidade de magistrados no segundo grau de jurisdição, pois para cada desembargadora negra há 33,5 desembargadores brancos.
Analisando esses dados foi possível afirmar que homens brancos possuem 8,2 vezes mais chances que mulheres negras de se tornarem juízes. Na carreira, juízes brancos possuem 4,6 mais chances que mulheres negras de se tornarem desembargadores.
Pois bem, a pergunta que fica é: o que faz uma mulher negra não conseguir ocupar os cargos dentro da magistratura e dentro do Sistema de Justiça como um todo no Brasil?
Essa é uma provocação que exige uma resposta complexa, pois há diversos fatores envolvidos. Contudo, nada é possível de ser dito sem que se coloque em discussão o fator raça, que reflete diretamente no lugar social ocupado por mulheres negras na nossa sociedade.
Romper o ciclo do trabalho doméstico é um dos grandes desafios. Mulheres negras saíram da condição de escravidão, onde trabalhavam nas lavouras, na casa grande e como ganhadeiras, para recolocarem-se como cozinheiras, lavadeiras, auxiliares de serviços gerais em sua grande maioria. Não deixaram, portanto, de realizar serviços domésticos que até os dias de hoje sequer são remunerados, usufruindo de poucos direitos sociais. A resistência à aprovação da PEC das domésticas apenas em 2012 é um dos maiores exemplos disso (o emprego doméstico sempre foi exercido notoriamente por mulheres negras, assim entendidas como sujeitos de direitos de segunda categoria.).
Com suas vidas à margem da sociedade, percebe-se que a elas sequer é dado o direito de sonhar e pensar em outras possibilidades existenciais.
Não bastasse isso, é sabido que os senhores exerciam seu poder sobre as escravizadas, explorando sexualmente seus corpos, cultura que não foi rompida com a Lei Áurea.
Essa é uma das circunstâncias que pode explicar os números alarmantes quando se trata de feminicídios de mulheres negras. Assim também quando se problematiza a efetividade da Lei Maria da Penha com relação a esse grupo racial.
Segundo o Atlas da Violência de 2020 (IPEA) entre os anos de 2008 e 2018 a taxa de homicídios de mulheres não negras caiu 11,7%, embora o percentual de mulheres negras assassinadas tenha aumentado em 12,4%. Ainda de acordo com a pesquisa, 68% das mulheres assassinadas em 2018 no Brasil eram negras. Enquanto entre as mulheres não negras a taxa de mortalidade por homicídios no último ano foi de 2,8 por 100 mil, entre as negras a taxa chegou a 5,2 por 100 mil, praticamente o dobro.
Todos esses dados revelam que aplicação do princípio da igualdade de modo universal não é suficiente, impondo-se ao Sistema de Justiça um novo olhar para a mulher negra, como sujeito de direitos, construindo estratégias para eliminar discriminações e desigualdades que se perpetuam ao longo dos tempos.
Por outro lado, necessário pensar sobre como mulheres negras estão em constante contato com o Sistema de Justiça, em razão de outra realidade que repercute diretamente em suas vidas. A juventude negra, maior vítima de assassinatos em nosso país, deixa mães, mulheres, irmãs, todas desassistidas e à mercê de um Estado que, de um modo geral, ainda é pouco dedicado à proteção das vítimas e seus familiares.
Compreender como o racismo estrutural e institucional manifestam-se em que práticas dos operadores do direito torna-se fundamental. Dar voz a mulheres que necessitam desses serviços, não apenas como vítimas diretas, mas também por acompanhar filhos, irmãos, esposos, companheiros, pais, réus e vítimas em diferentes circunstâncias, entendendo como são recebidas e tratadas, de que informações carecem, como são ouvidas e qual atenção lhes é dispensada tornam-se elementos imprescindíveis para um agir que pretenda convergir ideais de igualdade e justiça.
Mesmo estando constantemente nesses ambientes, mulheres negras estão totalmente invisibilizadas nas políticas de gestão e governança, não são aplicados protocolos de atendimento, tratamento e encaminhamento que lhes possibilitem a devida atenção. Portanto, abrir-lhes espaço é imprescindível para aperfeiçoamento e eliminação do racismo em uma perspectiva de proteção do cidadão diante do Estado, sendo também relevante a análise da situação daquelas que não são partes nos processos, mas definitivamente são usuárias dos serviços prestados.
De tudo isso conclui-se que não basta a inclusão de mulheres. Do mesmo modo, não basta a proteção de mulheres. O importante é voltarmos o olhar para aquelas que se encontram em maior condição de vulnerabilidade. Como refere Joaquim Herrera Flores, “A força de nomear as coisas, pode modificar a maneira de vê-las.” Marcar a raça, portanto, é imprescindível nesse processo.
Nisso consiste o duplo desafio do Sistema de Justiça: incluir Mulheres Negras nos espaços, e acima de tudo protegê-las, criando-se um círculo virtuoso capaz de transpor o quadro absurdo de desigualdades.
Com Mary Aguiar fica o exemplo de insubmissão e a inspiração para as meninas e mulheres negras – nutrir anseios e ambições que as afastem dos lugares sociais trazidos da escravidão é um desafio constante. Transformá-los em realidade é algo maior ainda.
Mary Aguiar não foi apenas uma pioneira. Foi destemida, pois resistiu em um lugar que não foi forjado para mulheres como ela, materializando na sua existência e no exercício da profissão a transmutação da mulher preta na condição de escravizada para a de cidadã, mesmo que a sociedade insista em não a reconhecer como tal.
Karen Luise é Juíza de Direito na 1ª Vara do Júri de Porto Alegre/RS, Membra da Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul, do Instituto de Acesso à Justiça, da Associação dos Juízes para a Democracia, do Comitê de Equidade de Gênero, Raça e Diversidade do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, formadora da ENFAM.
Texto publicado originalmente no Justificando.
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