Por Anakwa Dwamena para The New Yorker
Tradução de César Locatelli publicada originalmente pela Carta Maior
Imagem: Rodrigo Capote / Bloomberg/ Getty
Vários meses antes da chegada do coronavírus ao Brasil, nesta primavera, uma série de tragédias, provocadas pelo homem, se sucederam para Maria Marques Martins dos Santos. Em 12 de novembro, dos Santos, trinta e oito anos, mãe de três filhos, cuja estrutura de um metro e meio de altura é coroada por cabelos castanhos encaracolados, estava em sua casa, na Favela do Amor, em São Paulo. Logo depois da meia-noite, seu filho de quatorze anos, Lucas, saiu para comprar refrigerante e biscoitos e nunca mais voltou. Três dias depois, seu corpo afogado foi encontrado em um lago próximo, depois do que testemunhas disseram ter sido um encontro com a polícia militar. Quatro dias depois, quando Santos foi à delegacia para tentar identificar quais policiais haviam atacado seu filho, a polícia a deteve, dizendo que havia um mandado pendente para sua prisão. Onze dias depois, em 30 de novembro, algemada e com roupas da prisão, ela observou em sofrimento quando o corpo deteriorado do filho foi enterrado em um caixão fechado.
Nos quatro meses seguintes, com Santos na prisão, o coronavírus chegou ao Brasil, primeiro afligindo os ricos e depois se espalhando pelos bairros e prisões mais pobres. As penitenciárias de São Paulo, que detêm cerca de quarenta por cento da população total encarcerada do Brasil, são notórias por sua falta de assistência médica. A família de Dos Santos temia que ela tivesse sido efetivamente condenada à morte. Em todo o mundo, a pandemia de coronavírus expôs e exacerbou as desigualdades de classe e raça. No Brasil, onde os seis homens mais ricos detêm a mesma quantidade de riqueza que a metade mais pobre da população, o fardo desproporcional da crise sobre os negros e pardos pobres tem desafiado a ilusão popular arraigada de que o país é uma sociedade igual e sem raça. Em grande parte, encarcerando negros e pardos, o Brasil, na última década, tornou-se o lar da terceira maior população em prisões e cadeias do mundo, ultrapassando a Rússia. Nesse período, a população carcerária do país dobrou. As prisões brasileiras são criadouros de doenças: a água é racionada; a falta de assistência médica no local significa que as pessoas doentes são constantemente transportadas entre hospitais públicos e prisões; e a superlotação é endêmica – em média, as prisões no Brasil excedem sua capacidade em sessenta e seis por cento. Para Santos e os outros setecentos mil presos do Brasil, o isolamento social é impossível.
Surpreendentemente, trinta por cento das pessoas encarceradas no Brasil não foram condenadas por um crime. Cerca de um terço dos prisioneiros do país estão atrás das grades por acusações de porte de drogas, e a maioria deles são mães negras como Santos. Reconhecendo a ameaça da pandemia, o Conselho Nacional de Justiça, um conselho de supervisão judicial do governo, recomendou em março que os juízes libertassem prisioneiros que não cometeram crimes violentos e que fossem membros de grupos de risco: mulheres grávidas, nutrizes e mães ou responsáveis legais por crianças até doze anos de idade. “Somente em São Paulo, 11.284 pessoas sem histórico de criminalidade têm direito a sentenças reduzidas sob essa orientação”, disse-me Marcelo Novaes, advogado de Santos. Mas os juízes, que são os únicos funcionários que podem reduzir sentenças, têm relutado em fazê-lo: de acordo com as diretrizes do Conselho Nacional de Justiça, trinta e cinco mil prisioneiros são elegíveis para a libertação e dos vinte e cinco mil que se inscreveram, apenas setecentos até agora foram liberados pelos juízes. À medida que o coronavírus tem se espalhado pelo Brasil, o país sofre o segundo maior número de infecções e mortes entre todas as nações do mundo, atrás apenas dos Estados Unidos. Em suas cadeias e prisões, alguns presos estão escrevendo preventivamente cartas de despedida para suas famílias.
“O que estamos tentando evitar é um massacre”, disse-me Luciana Zaffalon, defensora brasileira da reforma da justiça criminal. Zaffalon lidera a Plataforma Brasileira de Política de Drogas, um dos vários grupos que pressionam os juízes para libertar prisioneiros vulneráveis. Em 2006, foi aprovada uma lei que permitia clemência aos usuários e instituía medidas mais duras para os traficantes. Em resposta, promotores e juízes passaram a acusar de tráfico as pessoas detidas com pequenas quantidades de cocaína ou crack, o que prevê sentenças entre cinco e quinze anos. Os defensores da reforma da justiça criminal dizem que os juízes também começaram a acusar mulheres negras pobres por tráfico, como poucas delas podem pagar caros advogados particulares de defesa e, portanto, são mais fáceis de serem condenadas do que réus ricos. Como resultado, entre 2000 e 2016, a população de mulheres presas aumentou quase setecentos por cento, para cerca de quarenta e quatro mil detentas. Zaffalon, ex-ombudsman da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, culpou a mentalidade, entre juízes, de extremo punitivismo, pela resistência do governo de libertar pessoas, o que afetou desproporcionalmente os pobres negros e pardos. “Quase todos os casos criminais são de negros e pobres que não têm dinheiro para contratar um advogado particular para apelar de suas sentenças”, disse ela.
A corrupção há muito atormenta o sistema judicial brasileiro. A maior parte do orçamento do judiciário vai para os salários dos juízes, muitos dos quais são homens brancos mais velhos que se formaram nas universidades de elite do país. O Projeto Justa, uma organização que luta por maior transparência judicial, descobriu que cem por cento dos que se tornam juízes acabam no segmento 0,08% mais rico da população, o que o grupo sustenta ser um sinal claro de racismo sistêmico e corrupção.
Desde março, a proibição de visitas nas prisões impede que as famílias levem comida para os encarcerados – uma prática comum em um país onde muitos reclusos, devido ao subfinanciamento bruto do sistema prisional, são desnutridos. Andrelina Amélia Ferreira, que lidera o movimento Mães do Cárcere, contou-me que ouviu histórias de detentos comendo pasta de dente por desespero e fome. “Mesmo que adoeçam”, disse Ferreira, “é direito deles morrer com a família e não sozinhos na prisão”. Nos últimos dezoito anos, Ferreira usa sua casa como sede e orienta ali entre vinte e trinta mulheres por dia. Ela me disse que teme, como nunca temeu antes, pela vida dos prisioneiros. “Sou uma mulher que cresceu em uma comunidade simples, dentro da periferia, e posso dizer que nunca tive tanto medo quanto agora”, ela me disse. “Não sabemos quem permanecerá vivo, quem não permanecerá.”
Na terça-feira, depois de zombar do risco de infecção por coronavírus por meses, o presidente brasileiro Jair Bolsonaro anunciou que havia testado positivo para o vírus. Desde a chegada da pandemia no Brasil, Bolsonaro sozinho tem criado o caos: menosprezou sua severidade, apesar das evidências esmagadoras de seu perigo; desafiou publicamente as medidas de isolamento social caminhando entre multidões e apertando as mãos e incentivando outras pessoas a fazê-lo; brigou com e demitiu um ministro da saúde e boicotou os esforços dos demais líderes do país. Questionado sobre o crescente número de casos em São Paulo, em uma entrevista em 27 de março, Bolsonaro respondeu: “Sinto muito, algumas pessoas vão morrer. Eles morrerão. A vida é assim. Você não pode parar uma fábrica de automóveis por causa das mortes no trânsito.”
Com o aumento das taxas de infecção no Brasil, surgiu uma imagem mais clara de quais são as vidas que o presidente, aparentemente, considera descartáveis. No início do surto, o maior número de casos ocorreu em bairros ricos – os únicos lugares com acesso a testes. Com o tempo, trabalhadores da necrópole de Vila Formosa, o maior cemitério da América Latina, notaram uma aceleração nas mortes de pessoas nas periferias da cidade. Agora, a taxa nas favelas e periferias é oficialmente dez vezes maior que a média no resto do país. Mais da metade dos casos do Brasil está na região sudeste, onde cerca de dez milhões de pessoas vivem em casas não conectadas às redes de esgoto, e cerca de sete milhões não têm acesso à água corrente. A desigualdade no sistema de saúde do Brasil também é extrema. Sessenta por cento dos leitos de UTI no estado de São Paulo estão em três de suas regiões mais ricas e apenas vinte e cinco por cento da população, nacionalmente, tem seguro de saúde privado ou pode pagar. A disparidade resultante por raça nas taxas de mortalidade relacionadas ao coronavírus é flagrante: Os negros em São Paulo têm 62% mais chances de morrer da COVID-19 do que os brancos.
Raquel Rolnik, professora de planejamento urbano da Universidade de São Paulo e ex-relatora especial da ONU sobre moradias adequadas, me disse que o impacto da pandemia foi exacerbado porque “o vírus chegou a um país desmantelado”. Desde os anos 1960, o custo da moradia no Brasil está acima do alcance do trabalhador médio. “O mantra deve ser ‘ficar em casa'”, disse Rolnik, mas “no caso do Brasil, para ficar em casa, é preciso ter uma casa para começar”. Quando assumiu o cargo, Bolsonaro dissolveu o Ministério das Cidades, que havia investido setecentos e oitenta bilhões de reais em imóveis, por mais de uma década, muitos deles em imóveis públicos para brasileiros de baixa renda. “Agora é o deserto novamente”, disse Rolnik.
“É complexo, porque o presidente está andando nas ruas negando a doença e espirrando nas pessoas e de mãos dadas”, disse-me Ferreira. “Então, para as pessoas que moram nas favelas, ele passa a mensagem para fazer a mesma coisa.” O governador de São Paulo, João Doria, disse à Associated Press: “Estamos lutando contra o coronavírus e contra o vírus Bolsonaro”.
Doria e seu colega no estado do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, foram elogiados por confrontar Bolsonaro contra o coronavírus, mas foram criticados por permanecerem complacentes com a polícia que matou centenas de negros e pobres. O Rio registrou um aumento de 23% nas mortes por policiais nos primeiros cinco meses de 2019, e pesquisas recentes do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada mostram que entre 2007 e 2017 o assassinato de negros no Brasil aumentou dez vezes mais rapidamente do que do resto da população. Em São Paulo, os assassinatos pela polícia militar estão aumentando, de acordo com a Globo, uma organização de notícias brasileira, apesar da diminuição da taxa de criminalidade associada à pandemia. A devastadora política de policiamento de Witzel no Rio, que autoriza policiais a disparar foguetes, de helicópteros, contra comunidade, matou cerca de mil e oitocentas pessoas no ano passado, o maior número já registrado no estado.
As pandemias anteriores, como a gripe de 1918, também viram falta de auxílio estatal para ajudar os pobres e os negros. O que é único na história do Brasil, no entanto, é “ter um presidente contra a ciência”, disse-me Lilia Schwarcz, historiadora brasileira e professora da Universidade de Princeton, citando a crença no círculo interno de Bolsonaro de que a Terra é plana. A relutância de Bolsonaro em pressionar pelo isolamento e sua vontade de deixar os vulneráveis morrerem, acrescentou Rolnik, é emblemático de sua maior “filosofia absolutamente pró-morte e prática da necropolítica”, uma referência ao filósofo camaronês Achille Mbembe, que argumentou que os estados afirmam sua soberania, impondo dor e morte a populações consideradas como o outro.
Em seu livro “Brasil: Uma biografia ”, que ela escreveu com Heloisa M. Starling, Schwarcz afirma: “A experiência de repetidas e persistentes violência e dor persistem na sociedade brasileira moderna”. Esta é uma referência à longa história da escravidão no Brasil, que recebeu quase a metade dos escravizados levados para as Américas e, em 1888, foi a última nação da região a aboli-la. Os historiadores brasileiros há muito a descrevem como uma “falsa abolição”, porque manteve intocadas as estruturas econômicas, políticas e sociais baseadas na escravidão. Um século se passou até que uma nova constituição, em 1988, levou à implementação de programas de ação afirmativa e outros esforços do governo para aumentar a equidade. Bolsonaro descarta a existência de racismo sistêmico no Brasil e, desde sua eleição, tenta reverter os programas de governo projetados para ajudar grupos marginalizados. Schwarcz argumenta que a falta de desejo do governo de intervir em nome dos negros pobres moradores de favelas e dos povos indígenas é uma continuação de uma era anterior da história do país. Muitos dos seguidores de Bolsonaro acreditam que os ganhos dos últimos trinta anos para os negros brasileiros, como um sistema de cotas projetado para dar mais acesso a estudantes negros à educação, estão privando outros brasileiros das oportunidades a que têm direito. Seus seguidores professam, Schwarcz me disse, uma “nostalgia por uma história e um passado que nunca existiram”.
Recentemente, Santos foi libertada da Penitenciária Feminina de Santana, depois que um juiz decidiu que sua sentença era ilegal. Devido a praticamente nenhum teste nas instalações e à categorização geral de algumas mortes nas prisões como causadas por “infecções respiratórias agudas”, é difícil dizer quantos presos em Santana realmente morreram de COVID-19. Onze guardas da penitenciária deram positivo e um morreu. Sendo eles próprios residentes de baixa renda da periferia, os guardas também são vítimas da desigualdade no acesso a exames e cuidados de saúde.
Durante toda a prisão e desde a libertação, Santos não teve acesso a exames. Ela me disse que não acha que está com o vírus, mas sente “algo no nariz, como uma gripe”. Antes de seu encarceramento, ela trabalhava dez a doze horas por dia, ao lado de sua irmã, coletando e entregando amostras de urina aos hospitais para testes. Ela ganhava trezentos e vinte reais – aproximadamente sessenta dólares – por mês. Agora, sua única fonte de renda é o dinheiro das sociedades de ajuda mútua. “Graças às doações, estamos sobrevivendo”, ela me disse.
Segundo o registro oficial do governo, apenas sessenta e três presos nas prisões brasileiras morreram por causa do coronavírus e outros 5.359 prisioneiros deram positivo. Os números provavelmente são muito mais altos, dada a taxa extremamente baixa de testes atrás das grades. Novaes, advogado de Santos, disse que as leis criminais e o sistema de policiamento do país são duas das ferramentas que os brasileiros ricos usam para manter a desigualdade no país. Um número crescente de pessoas mais vulneráveis do Brasil está sendo enredado por um sistema de encarceramento em massa, que, segundo os defensores da reforma, leva a ainda mais pobreza e desigualdade.
Quando perguntei a Santos como era ser um cidadão brasileiro nesses tempos, ela disse que se sentia abandonada pelo Estado e prejudicada por ele. A polícia havia retirado “minha felicidade, meu filho e minha vida”. Ela culpou o sistema judiciário por tentar silenciá-la. Quanto a Bolsonaro, Santos não quer que ele morra, mas ela espera que ele sinta “os efeitos da COVID-19, pois não é uma ‘gripe’, como ele disse antes”. Ela me disse que está determinada a fazer tudo o que puder para encontrar justiça para seu filho e impedir que ele se torne “outro garoto preto morto na estatística”.
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